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Um olhar autoreferencial sobre os circuitos artísticos alternativos – por Newtown Goto

Um olhar autoreferencial sobre os circuitos artísticos alternativos:

Situação mestiçagem specific: AV/ PR /XX & XXI.

 

Busca-se aqui identificar e contextualizar a produção de artes visuais feita em circuitos alternativos, tendo como área de interesse específico o território paranaense, e o recorte temporal, os séculos XX e XXI.

 

Distante de querer enclausurar a cultura num regionalismo, em limites de fronteiras ou formação étnica, propõe-se, antes, um olhar sobre a arte local visando pontuar valores culturais e artísticos singulares, construindo, simultaneamente, um discurso capaz de dialogar com a arte universal de seu tempo, com o espírito da época.

 

Ao contrário de imprimir uma tendência nativista ao olhar instaurado, o contexto local torna-se foco, de fato, pois ainda hoje ele é uma invisibilidade dentro do patrimônio visual da arte brasileira. Assim, é ainda necessário revelá-lo às vistas do outro: nós, brasileiros (!).

 

As causas desse sulista ponto cego histórico, entre outros que certamente existem Brasil afora, remetem, a princípio, a questões de indústria cultural e a relações entre metrópole e periferia, a exemplo da influência e dominância da cultura do eixo Rio-SP. Além disso, a situação específica local também não é exatamente uma reedição do que acabou sendo convencionado como tripé da brasilidade étnica, a mistura do negro, índio e português; nem tampouco, uma sincronia e eqüidade aos grandes ciclos econômicos que predominaram no território nacional – pau-brasil, açúcar, mineração, café… Isso provavelmente contribui para que certas especificidades culturais regionais, a exemplo da situação paranaense, continuem despercebidas mesmo às leituras consideradas panorâmicas sobre a produção cultural e artística brasileira.

 

Nessa terra, já no princípio da Colônia, os índios foram caçados e dizimados por bandeirantes paulistas com suas incursões às missões jesuíticas espanholas, e expulsos de suas terras – num processo gerador de uma grande migração e varredura étnica, conflito esse finalizado posteriormente com a colonização tradicional portuguesa, a qual viria a subir a Serra do Mar, movendo-se da região da Baía de Paranaguá aos Campos de Curitiba, e expandindo-se pelos Campos Gerais. Diga-se, uma colonização portuguesa que durante muito tempo viveu isoladamente e em situação até precária, principalmente no planalto. Muito depois disso, a partir de meados e fim do século XIX, vieram milhares de imigrantes, principalmente europeus, para ocupar, cultivar e colonizar a terra. E por fim, antes da metade do século XX, levas de cafeicultores mineiros e principalmente paulistas chegaram às terras roxas do norte do Paraná; enquanto no Oeste, posteriormente, foram gaúchos os colonos.  Desta forma, o povo paranaense tem uma composição populacional recente, com diferentes lastros de origem e uma identidade ainda em fusão, pode-se dizer até, sem identidade, pois tudo está sendo, ainda, mistura. Somos, pois, neomestiços.

 

Quanto à economia, um ciclo do ouro que logo percebeu-se como escasso;  o intenso tropeirismo, responsável pelo transporte de gado do Rio Grande do Sul à São Paulo e pela fixação da colonização cada vez mais para oeste; o beneficiamento e comércio da erva mate deflagrando o primeiro grande ciclo industrial; a exploração da madeira num processo devastador;  o café; a soja; e uma recente industrialização, calcada, em muito, num capital internacional na região de Curitiba e na agroindústria, no interior.

 

Uma cultura num processo de hibridização como esse pode parecer uma incógnita aos outros. E também sua arte. Ainda assim, a região mais tradicional e de colonização mais antiga, principalmente Curitiba – por ser desde muito tempo o maior centro urbano e industrial, e também a capital – tem uma rica e singular história cultural, inclusive de circuitos alternativos de arte.

 

Enquanto a região de Londrina, de história mais recente, somente entorno dos anos 70, e adensando nos 80, é que se apresenta com mais força para a cena cultural e artística.

 

Não deixa de ser estranho, ainda que processualmente compreensível, o fato de, mesmo dentro do Paraná, as culturas de Curitiba & Londrina (por exemplo) se verem também quase como exóticas uma a outra…

 

A prática artística relevada aqui, de circuitos autogeridos, trata justamente da questão de como os artistas e outros agentes culturais construíram seu próprio lugar e tempo para melhor fazerem circular suas produções. E/ou ainda, de quais estratégias fizeram uso esses mesmos empreendedores para não se conformarem estritamente aos tradicionais circuitos institucionalizados de arte ou parâmetros de linguagem artística já estabelecidos. Isso num ambiente paranaense onde até a própria institucionalização era algo em construção, um porvir. E, em certos aspectos, continua a ser um porvir.

 

O vínculo com a experiência local – a autoreferencialidade – principalmente quando confrontado com os conteúdos externos que se instalam e reverberam, é, além de um gesto de resistência e autonomia cultural, uma perspectiva afirmativa de troca e diálogo. Sem isso, corre-se o risco da aculturação[1]. E aqui o PR, essa nova varredura também é um perigo à espreita, pois numa cultura que ainda decanta-se enquanto mistura específica, os conteúdos alheios que chegam através das novas dinâmicas culturais, econômicas e midiáticas por vezes exercem uma pressão excessiva. Não bastasse isso, estamos falando ainda em circuitos alternativos, de um certo tipo de experimentalismo e estratégia, buscando analogias, similaridades e particularidades com o já dito zeitgeist.

 

A autogestão nos circuitos artísticos não é abordada como um tema de fetiche. É, sim, encarada como reflexo de necessidades locais para a manifestação da diferença. Reflete-se sobre esse contexto como o memorial de uma diversidade[2]. 

 

E aí, quem sabe, uma nossa singularidade pode também ser incorporada e digerida pelos outros, enriquecendo o todo. 

 

Ainda que essa complexidade cultural toda seja uma realidade, e que a intenção de se fazer um olhar regional mereça muitas relativizações, pois afinal, “que Paraná é esse?”; alguns acontecimentos surgem como marcantes na manifestação local dos circuitos artísticos alternativos, e merecem ser melhor compartilhados e contextualizados: o Cineton de Bruno Lechowski; a revista o Joaquim editada por Dalton Trevisan; a Garajinha; os Encontros de Arte Moderna; o Super Loja Show; Festival Universitário Londrinense, Boca do Bode e Colher de Chá; os jornais Anexo, Pólo Cultural e Nicolau; as revistas Raposa e Gráfica, K’an, Medusa e Coyote; os grupos Sensibilizar, Moto Contínuo e Museu do Botão; o ACT, a epa!, o Dia do Nada, o Espaço Cultural Betobatata, Ari Almeida, Organismo, interluxartelivre e outros…

 

Falta pra nós, talvez, assumir a falta de tradição, a nossa mestiçagem specific, dando-nos mais liberdade para encarar a situação a partir de duas assertivas correntes por essas bandas sulistas (ao menos, no circuito mais alternativo): “Não estou à margem de nada, estou no centro de uma outra onda”[3]. E: “Quem não tem tradição, inventa!”[4]


[1] Comentário inspirado no texto Da produção de subjetividade, de Felix Guattari, onde o autor ressalta a importância da transversalização da autoreferencialidade, ou seja, o diálogo (transversalização) da experiência cultural própria (autoreferencial) com a cultura universal. In: PARENTE, Andr                                                                                                                                       . Imagem Máquina. A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

[2] Alain Badiou coloca a questão da política heterogênea como o a estratégia mais importante para uma comunidade ou sociedade encarar o mundo globalizado, diminuindo os riscos de ser simplesmente engolida por padrões homogeneizantes, pois a lógica heterogênea afirma o próprio tempo e espaço de uma cultura, sendo resultado de necessidades sociais singulares. In: BADIOU, Alain. A partir de anotações feitas da fala do filósofo na conferência realizada no Colóquio Interdisciplinar Resistências, ocorrido no Cine Odeon, Rio de Janeiro, 2002.

[3] Essa é do poeta gaúcho Vitor Ramil.

[4] E essa, do multiartista paranaense Hélio Leites.

Cineton, de Bruno Lechowski. Varsóvia, 1925.

Encontros de Arte Moderna: Sábado da Criação. Curitiba, 1971.
Arquivo: Ana González & Key Imaguirre

Grupo Moto Contínuo: intervenção urbana com cartazes, Curitiba, 1983.
Arquivo: Moto Contínuo

Grupo Sensibilizar: happening “31 de março de 1964”, Boca Maldita, Curitiba, 1984.
Arquivo: Sensibilizar

Carnaval da Ex-cola de Samba Unidos do Botão, Rua das Flores, Curitiba, 1998.
Arquivo: Museu do Botão

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